segunda-feira, 9 de julho de 2007

Pocotó


O galope dos cavalos não me saía dos ouvidos, crescia, como se avançasse no paralelepípedo. Donde vinham aqueles cavalos? (Graciliano Ramos, Angústia).

- Abaixa esse troço, Gabi, a voz esganiçada bradou de um dos quartos.
Na sala, Gabi chacoalhava-se toda, joelhos, pernas e ombros, componentes novos, dentro das especificações e prazos de validade. Na frente, tela enorme de televisão. Seguia o ritmo da música altíssima, reverberando por todo apartamento. Cavalgava.
“Pocotó, pocotó, pocotó, pocotó, minha egüinha pocotó”...
- Não pensa que não leva porrada só porque tem três anos, praguejou a mesma voz. “Pocota, pocotó, pocotó, pocotó, minha egüinha pocotó”...
- Olha aqui, não me inferna, sujeirinha, vociferou a adolescente espigada de 12 anos, relâmpago atravessando o desalinho da sala, e que desliga o aparelho com um tranco de pata no botão.
O silêncio não chegou a ser sentido porque em um tiro o choro da menor foi acionado Ao mesmo tempo, Marina, a crescida, voltando o rosto para os lados da cozinha, berrou:
- Juscelina, Juscelinaaaa! Vem ver a pentelha que não pára de chorar.
Enquanto Juscelina materializava-se na sala, enxugando as mãos nas pernas da bermuda de jeans justa e descorada, Marina (cabelos de Medusa e roupa de dormir – apesar de ser mais de duas da tarde) olhava fixo para irmãzinha, com um dos braços levantados em ameaça, palma da mão, dedos e punho prontos para o tapa.
- Vem, Gabi, vem com a Juju, disse a mulher alçando a mão para a pequena, que se jogara no chão, onde, temporariamente calada e com os lábios franzidos (rabo de galinha que se nega a botar), batia freneticamente as pernas, entendendo as ameaças da irmã. – E você, Marina – juntou Juscelina - toma jeito, senão, quando sua mãe chegar, conto tudo pra ela. Você vai ver.
- Vou ver o quê? Ela se mandar para o quarto para chorar porque o pai da Gabi arrumou outra mais moça e foi embora? Marina respondeu sarcástica, duas mãos na cintura e olho-no-olho em Juscelina, enquanto os olhos arregalados do ursinho da camisola não olhavam para ninguém. Juscelina voltou para a cozinha, puxando Gabi soluçante pela mão, peixinho dourado expulso do caos daquela sala.
Na cozinha, Jucelina pegou Gabi pela cintura e sentou-a em um dos bancos da mesa. Deu as costas para a menina e pressionou a tecla de um aparelho de televisão, menor do que o da sala, mas ainda ave de bom tamanha, escura, pousada sobre o balcão, como sobre um poleiro, ao lado do forno de micro-ondas, do processador de alimentos e da batedeira. Dentro da gaveta, embora fechadas, apostas de facas.
- Minha flor, olha o que você quer, exclamou sorrindo, voltando-se em direção à Gabi.
A cozinha foi invadida pelo trinado do bicho, mesma música que Gabi ouvia na sala, volume um pouco mais baixo.
“O jumento e o cavalinho eles nunca andam só, quando saem pra passear levam a égua pocotó” ...
E Juscelina continuou:
- Quer uma bolacha, fia? Nem esperando resposta, empurrou o pacote pacificador já aberto para as mãos de Gabi.
- Eu também quero, disse Marina. Entrou na cozinha com a força de um pensamento ruim e tomou o embrulho colorido das mãos da irmãzinha. O verde-vermelho-dourado rutilantes do papel-metal amassado e a língua mostrada para Gabi, acionaram novas lágrimas.
- Dá, dá para mim, é meu, é meu, entre lágrimas vagiu Gabi, estendendo os bracinhos e inclinando o tronco para frente. Quase caiu do banco onde estava sentada – como um anjo, há tempos, também do céu caiu.
- Sai Marina, parece que você é atentada. Tem parte com o Cheiroso. Eu já falei: deixa a menina em paz. Não azucrina. Telefono pra sua mãe.
- Não estou fazendo nada, retrucou Marina rindo e devolvendo o pacote de bolachas amassado. Tirara apenas uma, aceno de prêmio nos concursos que levam a mundos encantados, imunes à dor. – Gabizinha tem a cara dessa bolacha, branca e redonda.
- Toma jeito, Marina, insistiu Juscelina.
- Juscelina, faz um chocolate batido para a gente? pediu Marina, mudando completamente o tom de voz, ao que respondeu Juscelina, cheia de censura:
- Você ainda não almoçou, mocinha.
- Hoje vou almoçar leite e bolacha, argumentou Marina. - Sabores que alimentam.
Sentada à mesa, a camisola de Gabi, muito lavada, já pequena para sua altura de ninfa nascente, deixava suas coxas a mostra. Sob uma penugem clara, sinais esguios de cortes de muitos tamanhos maculavam-lhe a pele.
“Vou mandando um beijinho pra filhinha e pra vovó”, continuava a televisão.
- Faço qualquer coisa, mas deixa a gente em paz, Marina, eu e sua irmã.
- Irmã que nada, sua burra idiota, meia-irmã. Sou irmã dela só por parte de mãe. Nossos pais são diferentes.
- Marina, desse jeito não dá. Não tem leite nem chocolate, dá descanso, por favor.
Contrariada, Marina levantou-se com um impulso de mola e voltou para seu quarto. Batida forte de porta, selo da solidão. Sentada na beira da cama, respirou fundo.
Quando foi mesmo que vira seu pai pela última vez? Se cruzasse com ele na rua, não o iria reconhecer.
No meio dos lençóis desarrumados, tateou um compasso. Com a fina ponta de metal, fez um risco com força em sua coxa direita. Minúsculo veio de sangue desabrochou sem pressa. Hipnotizada de alguma forma com as gotinhas rubras que afloravam à sua pele, por um segundo a angústia que lhe atenazava a garganta saiu-lhe pela boca entreaberta e escorregou para debaixo de seu travesseiro. Só por um segundo.

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