quinta-feira, 5 de junho de 2008

duas vidas

Parece título de novela. Mas o filósofo Gaston Bachelard - que me inspira - defendeu que tinha dois pensamentos: o diurno, dedicado ao estudo da filosofia das ciências, e o noturno, voltado para a literatura, mito e poesia. Ciência e devaneio. Aprofundei minhas leituras sobre o pensamento noturno de Bachelard quando estudava Direito em Dijon. Terra da mostarda, dos grand crus da Bourgogne, do cassis e dos escargots, para mim foi também terra de deleite como leitora.

Se tivesse estudado tudo durante a semana, meu prêmio, aos sábados, depois da aula de culinária (sim, estudei culinária em Dijon, de forma paralela ao meu mestrado em Direito do Comércio Internacional), comia uma religieuse - uma espécie de eclair duplo, recheada com um creme aveludado e sensual - e ia ler na biblioteca pública. Esta tinho sido instalada em uma antiga capela do século XI, desativada. Realmente, era o paraíso.

Além das leituras aos sábados, que se tornaram para mim tão sagrados como o shabbat, havia as aulas de literatura francesa, a que eu assistia como ouvinte, na Fac. de Letras da Universidade. O curso era sobre literautra romântica francesa no século XIX, ministrado por um professor sírio - le sirien avez les yeux de velours. Com ele dissecamos, entre outros, Gerard de Nerval. "Tombez roses blanches, tombez de ce ciel qui brûle parce que la sainte de l' Abîme est plus sainte a mes yeux (citado de memória)".
Nesse curso eu era acompanhado por meu então boy friend (durante o tempo que vivi em Dijon tinha um namorado americano, colega de curso de Direito. Interessantemente, falávamos só em francês. When in Rome, do as the Romans do. E seu inglês era tão lindinho, todo cantado, porque era de Atlanta - meu Reth Buttler, dá-lhe "e o vento levou". Seus pais eram professores de literatura e ele lia até que bastantinho. Hoje, ele é advogado em Miami, nos falamos muito de vez em quando, ainda em francês).

Voltando ao Bachelard, seu pensamento noturno é poesia pura. Dá para sentir pelos título: A poética do devaneio, A poética do espaço, A água e os sonhos (ensaio sobre a imaginação da matéria) e assim por diante. Tenho todas as traduções em português editadas pela Martins Fontes. Os originais em francês estão naquela capela em Dijon. Bom lugar para serem guardados.

Pensamento diurno e noturno: o Direito para im foi sempre aquele primeiro, enquanto a literatura ficou por conta deste segundo.Ou, em outras palavras, o primeiro foi meu marido, o segundo, o amante.

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